Obs: As notas de rodapé foram colocadas após a resenha e antes das referências.
O
livro Dom
Casmurro é
constituído de 148 capítulos e uma narração composta por um
personagem complexo. Tão complexo que apenas seu ponto de vista é
narrado através de três pessoas diferentes nomeadas conforme a sua
idade. Uma hora intitula-se Bentinho, outra Bento, e, por fim, Dom
Casmurro. O primeiro é uma criança inocente que vê Capitu apenas
como uma grande amiga. Já Bento percebe que gosta mais da jovem do
que como amigo, mas tem ciúmes de amigo por ela. Nada muito “sério”
(piadas
à parte).
Com Dom Casmurro é diferente, após a tragédia do capítulo CXXI
Bento se torna amargo e perde o juízo da realidade. Começa a ficar
neurótico com atos da mulher e chega a ponto de quase matar o
próprio filho. Ele, Casmurro, é responsável por contar a história
de uma suposta traição desenvolvida por Capitu e Escobar.
Entretanto, o que faz o leitor acreditar nessas desconfianças se o
próprio narrador se diz com memórias falhas e está em pleno
delírio (Quincas Borba) ao escrever estes relatos?
Dom
Casmurro nos apresenta cada personagem com um capítulo exclusivo ou
uma grande parte deste. Somente no fim do romance é que se pode
perceber o quão influente e profunda a narrativa com esses
personagens se torna. Não pretendo me alongar muito na descrição
de todos, somente naqueles que regem a trama principal. O laço que
você, caro leitor, pode criar com cada um deles é
surpreendentemente imperceptível e … doloroso. A começar por D.
Glória, mãe de Bentinho. Uma mulher católica que no nascimento do
filho faz uma promessa de que quando crescesse se tornaria padre.
Aparenta ser uma mulher decidida e que não incomodaria muito os
homens da época pela sua rebeldia, contudo, desde o início do
enredo ela cria o seu filho sozinha1
já que o marido havia falecido.
Citando
o agregado, porque não falar do homem que ama usar superlativos em
sua vida. José Dias, homem que acompanha a família até quase o
desfecho da história e que tenta ajudar Bentinho de algumas formas
durante a sua vida. Machado de Assis construiu esse personagem de tal
modo que quando se está envolvido em uma cena e José Dias começa a
falar, colocando um superlativo na sentença, as chances do leitor se
animar são bem prováveis. Com o passar das páginas a história
fica cada vez mais melancólica que a tensão de algumas cenas só se
é quebrada por esse personagem singular. Até mesmo em momento de
tristeza para o leitor ele utiliza suas palavras amadas. Tais como a
sua última: Lindíssimo. Digo que ele é o tipo de pessoa que você
convida a entrar em casa, serve um café e não quer deixar de
conversar tão cedo. Porque sabe que José Dias vai lhe dar conselhos
úteis ou aliviar a tensão do clima, na pior das hipóteses vai lhe
falar um superlativo majestosíssimo.
Com
olhos de ressaca, Capitolina (Capitu) se mostra uma mulher empoderada
e decidida. Ela aparenta mirar um caminho e lutar com o máximo de
estratégias que conseguir até alcançá-lo. No caso, seu objetivo
seria conseguir independência econômica e sem muito esforço. Ou
seja, precisava de um marido rico para lhe garantir as duas coisas e
depois poderia viajar e viver o quanto quisesse e sem preocupar com
os outros e as despesas. É uma mulher segura, isso é mostrado em
alguns trechos em que quem vive a cena é Bento, como àquelas em que
ela engana D. Glória dizendo que Bento seria um bom padre no futuro.
Isso para esconder que os dois, supostamente, se amavam. Mal sabiam
eles que estava tudo planejado na cabeça dela para ter um futuro
seguro e estável. Não que ela não amasse Bento, mas as vezes a
máscara estratégica subia-lhe a cabeça.
De
que bastam estratégias
para segurar Bento se existia um terceiro. Escobar. O título do
capítulo CXIII, Embargos
de um terceiro, poderia
ser uma metáfora para dizer que havia um terceiro na relação entre
Bento e Capitolina. No caso, o terceiro elemento seria Escobar. Um
homem que Bento conheceu no seminário, que abraçou, que acariciou
os braços, que descreveu os olhos, que supostamente … amou. Ao
apalpar os braços de Escobar, Bento sente algo diferente que diz ser
inveja, mas será mesmo?
— Tenho
entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é
um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes
pulmões, disse ele batendo no peito, e estes braços; apalpa.
Apalpei-lhe
os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão,
mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Não só os
apalpei com essa idéia, mas ainda senti outra coisa; achei-os mais
grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam
nadar. (ASSIS,
Machado de. Dom Casmurro; - [Ed. especial]. Capítulo CXVIII; A mão
de Sancha;
P 162)
Continuando
essa linha de pensamento, vamos a Dom Casmurro. Ele é o responsável
por descrever a história do começo ao fim, mostrando ao leitor as
grandes diferenças na sua personalidade e algumas semelhanças que
os anos escondem. Ou não. A sua fixação pelo ciúme com Capitu
cresce aritmeticamente até o momento que seu melhor
amigo,
Escobar, morre. Após essa catástrofe – como ele escreve no livro
–, o crescimento transforma-se automaticamente em P.G. (progressão
geométrica)2
essa loucura. Como confiar em um escritor que deixa indícios na
narrativa que não tem palavra. Ele próprio escreve “É que tudo
se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as
lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.”
(ASSIS, Machado de. Dom Casmurro; - [Ed. especial]. Capítulo LIX;
Convivas
de boa memória;
P 91). Uma pessoa que se faz de promessas não cumpridas pode
realmente contar uma parte da história de sua vida com total
fieldade? Ou gerar a dúvida da famosa suposta traição que poderia
ser uma máscara para reprimir uma paixão por outra pessoa. Por um
homem. No trecho a seguir ele escreve que desde pequeno não era um
homem de palavra.
A
soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não
cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas
ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa
Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino
acostumara-me a pedir ao Céu os seus favores, mediante orações que
diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas,
e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos
números vinte, trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no
milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das
orações; além disso, cada promessa nova era feita e jurada no
sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de
uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O
Céu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.
(ASSIS, Machado de. Dom Casmurro; - [Ed. especial]. Capítulo XX; Mil
padre-nossos e mil ave-marias;
P 37)
Ele
via todos, e ao mesmo tempo, não via a si próprio. Era uma confusão
pois pensava que estava normal. Foi quando se deu conta que os outros
eram muito parecidos com a aparência dele naquele momento, porém
não eram a sua essência. O jovem tira a máscara do momento que
engana a sua percepção do mundo e volta a ver a realidade que um
dia estava clara e desmascarada perante seus olhos. Talvez essa
realidade poderia ter sido eterna se ela não se deixasse enganar
pelas máscaras e pelos estranhos pontos de vista de uma história
confusa. Se as máscaras são os padrões, o homem ver todos iguais a
ele e todos se veem iguais. Cada um com a sua perspectiva de mundo.
Porque nada é mais embaraçoso para uma máscara padronizada do que
um conjunto de máscaras iguais a ela. Como se a vida fosse uma
interpretação dos romances escritos e não o contrário. A
diferença se dá no término do horário e ao mesmo tempo a
semelhança. Pois se o término for uma conversa, a máscara
padronizada continua após seu fim. Entretanto, se o término for a
morte, após ela a máscara é caída e restará apenas uma dicotomia
opressora. O morto será bom ... ou ... mal3.
Com isso explico a neura de Dom Casmurro com a suposta traição. Ele
constrói ao leitor uma visão de Capitu que mostra ela como um morto
mal, em que ela convence Bentinho e Bento de fazer coisas que ele não
faria em situações normais. Ela o faz usar uma máscara que acaba
sendo absorvida já que ele é um tolo apaixonado. A obra acaba por
ter seu assunto centrado no jogo de
máscaras. Sobre adotar o rosto (o visual, o comportamento, as
ideias, a aparência, os modelos, os padrões, os valores) que a
sociedade impõe. Sobre vestir a máscara que é socialmente aceita,
que é aplaudida e elogiada e privilegiada, mas que, simultaneamente,
esconde o verdadeiro rosto de cada um. Exemplificando, retorno ao
primeiro parágrafo desta resenha em que disse que há um personagem
dividido em três pessoas (Bentinho, Bento e Dom Casmurro). Bentinho
seria o ser livre de máscaras já que é a lembrança vívida de sua
infância. Segundo Eduardo Lourenço (2011), é no sentimento de
saudade relacionado à memória que guardamos nossas melhores
lembranças. Principalmente as de quando éramos crianças, pois o
que vemos são flashes
de
alguns momentos da vida e não o cotidiano. Logo, a distorção dos
fatos é algo esperado.
Defendo
a teoria de que a relação de Dom Casmurro era composta de um
triângulo amoroso entre ele, Capitu e Escobar. Mas não como ele
aparenta abordar (ele sendo o traído), e sim o casamento dele com
Capitu e o romance desde o seminário com Escobar. Se o leitor voltar
a ler com cuidado perceberá que após a morte de seu melhor amigo,
Bentinho fica mais amargo, frio e louco. A frieza com que ele fala de
algo seja o que for e com quem for é uma forma de se distanciar de
algo que o machuca, uma forma de se distanciar desse sofrimento da
perda do amigo/antigo namorado. De se colocar, linguisticamente (e
portanto, psicologicamente) longe e desconectado desse sofrimento
específico. Assim, não sentido e tornando isso um mecanismo de
defesa quando se não se quer permitir sofrer ou ser afetado por
algo.
Por
fim, respondendo a clássica pergunta feita pelos professores de
literatura do Ensino Médio referente à traição, particularmente,
entendo a obra como um jogo complexo de máscaras que possibilita
diversas teorias diferentes. Entretanto, após algumas evidências
prefiro defender a presença de um teor de loucura que faz com que a
crença no narrador não seja fácil. A mesma loucura que atacou
Quincas
Borba (humano) e Rubião4
acaba por atacar Dom Casmurro. Contudo, o motivo é outro. Aqui, ele
aparenta ser a perda de seu grande e estimado amigo.
Notas:
1. Sozinha não é a palavra que melhor define a situação dela pois tinha pessoas que ajudavam na criação, como José Dias. A palavra está sendo utilizada mais no sentido de não ter o apoio moral/social do marido ao seu lado.
2. Progressão Aritmética seria quando algo cresce a partir da soma, de um em um. Logo, é um crescimento lento e gradual. Já na Progressão Geométrica o crescimento é a partir da multiplicação, ou seja, 2; 4; 8; 16 … Assim, após a morte de Escobar a cabeça de Dom Casmurro perde-se a cada capítulo com mais frequência e mais força chegando a loucura que é a narração deste livro.
3. Referência ao romance de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás cubas, em que o protagonista conta a sua vida após a sua morte. Teoricamente sem ter medo de falar algo indevido, já que a vida é algo tão vago para ele no momento.
4. Referências aos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba escritos por Machado de Assis em tempos diferentes mas que alguns colegas defendem como uma trilogia, considerando Dom Casmurro o terceiro volume
Referências
Bibliográficas
ASSIS,
Machado de. Dom Casmurro; - [Ed. especial]. - Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2014.
ASSIS,
Machado de. Obra Completa, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
BIBLIOTECA
DIGITAL e BANCO DE DADOS DE HISTÓRIA LITERÁRIA – NUPILL .
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br /
HTTP://www.machadodeassis.ufsc.br.
LOURENÇO,
Eduardo. O tempo português. In.: _____. Portugal como destino
seguido de Mitologia da Saudade. 4.ed. Lisboa: Gravita, 2011, p.
87-94.
LOURENÇO,
Eduardo. Romantismo, Camões e a saudade. In.: _____. Portugal como
destino seguido de Mitologia da Saudade. 4.ed. Lisboa: Gravita, 2011,
p. 143-154.
Olá Luiz! Eu simplesmente amo esse livro de paixão, é um daqueles clássicos que moram no nosso coração e merecem ser sempre relidos!
ResponderExcluirAdorei a resenha!
Te indiquei numa tag lá no blog, depois dê uma olhadinha: http://paixaodeleitora.blogspot.com.br/2016/01/tag-esse-ou-esse.html
BeiJU!
Oi, sim, esse livro é muito bom! Que bom que gostou da resenha, fico feliz.
ExcluirPode deixar que vou olhar o post que você fez em seu blog. Obrigado!
Beijão!